quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Sabores



Felicidade é algo frágil, tanto quanto o sabor exato do prato preferido. Tratando-se de paladar, individualidade é a grande chef.  Os ingredientes proibidos e os indispensáveis, as escolhas. A gente quer acreditar nas receitas que vão agradar a todos, que a pizza é universal e o chocolate é irrecusável, mas o prazer de cada pedaço é um momento particular, impossível de ser regulamentado.O toque certo de sal e de azedo. O doce muito doce ou o doce nem tão doce assim. A pimenta que para uns é trágica e para outros é mágica. E o amargo.


Ah, o amargo..  como é forte.  Estraga o doce e o salgado; potencializa o azedo; é bombástico com o picante. Basta um pouco, bem pouco dele e todo o ponto certo da comida certa se dissolve.  Tem amargo que o doce não adoça, que o sal só piora e que o azedo amarga junto. O amargo é aquele sabor que parece não nascer espontaneamente. Quanto mais amargo, mais tempo de conserva – dizem que vinho doce é vinho jovem, com pouca fermentação. Mas o amargo mais forte é o amargo da boca e dos sentimentos. Não tem doçura que cure, água que dilua e combinações que amenizem. O amargo da boca nasce fundo e é cuspido.

É inevitável conviver com os sabores da vida, principalmente com aqueles longe de serem os favoritos.  A qualquer momento, ela fornece ingredientes inimagináveis que requerem técnicas e gostos que não temos. 
Às vezes, vomitar é inevitável – nem sempre nos adaptamos a um sabor logo assim, de primeira.

A doçura tem seu quê de elegância e sutileza, dificilmente invade.  A gente sabe que doce de leite é bem doce, então escolhe  ou não provar,  sabe dosar mais ou menos a quantidade tolerável.  A preferência por ela às vezes também se afeta com o tempo; crianças  e jovens geralmente optam mais por docinhos. Há quem goste de neutralizar o doce com algum azedo porque doce demais enjoa, cansa; há quem goste de neutralizar o azedo constante com algum doce.  Nem todo mundo tolera doce, nem todo mundo pode ter doce, mas todo mundo escolhe o doce.  Poucos doces têm tanto poder de adoçar quanto aqueles que saem pelos olhos e pela boca porque eles nascem fundo também. A gratidão, o respeito, o carinho, o amor e o sorriso estão na boca e estão nos olhos, mas se formaram bem antes, lá na especialidade que algumas pessoas têm de botarem açúcar até nos abacaxis e nos limões que a vida deu.

E Dizem que o sal cura tudo na vida – as lágrimas, o suor e o mar. Discordo. Quantas lágrimas e quanto suor são amargos. Quantas lágrimas e quanto suor são bem docinhos. Quanto choro de alegria contamina com doçura quem está perto e quanto choro de amargura para na garganta e só sai pelo pensamento, pela frieza, pelo rancor gritado. Até o mar. Embora tenha tanto sal e tenha  uma beleza doce demais, já foi amargo pra muita gente. Ele pode até não ser remédio cura-tudo, mas é tempero indispensável, é sabor que neutraliza. É ele que sobe a pressão quando a gente sente aquele mal estar.

Há quem faça do azedo um estilo de vida. Que aproveita o limão dado e já compra logo um saco de 20kg para passar o mês. Que acha que toda comida e bebida deve ser azeda porque um dia ele teve de usar aquele limão. E que defende a obrigatoriedade de todos adotarem o azedume em seu cotidiano porque ele se recusa a adoçar seus limões. Mas há quem faça do azedo um tempero, um gostinho leve, só para enriquecer o paladar.

Das dificuldades que a cozinha do cotidiano dá, poucas são tão difíceis quanto provar a comida que o outro tem a oferecer. Às vezes a gente quer provar pão de mel de quem só tem limão com sal na despensa. Outras vezes, queremos oferecer suco de manga a quem só bebe destilado. Exigir do cozinheiro ao lado um prato que não está ao seu alcance ou um paladar favorável ao que podemos oferecer – receita pronta da frustração.

Se há algo a ser aprendido dia após dia, esse algo é a arte de ser chef da própria vida. É saber limpar um peixe, é entender que acrescentar a água aos poucos muda a forma de cozimento, é aceitar que jiló será obrigatório algumas vezes e  em outras, o único ingrediente. Quando somos chefs, somos soberanos com a nossa alimentação ao invés de exigir que o outro cozinhe por nós. E sabemos que métodos diferentes dos nossos podem ser usados.  E que, embora paladares sejam únicos, o tempero é fundamental .

Não há comida que agrade a todos, mas uma comida sem tempero é unânime: não agrada ninguém. Nem o cozinheiro. 

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